26 junho 2007

O Enterro

Sinceramente nunca fui um homem de Igreja e tenho minhas razões.
“Senhor quem entrará no santuário pra te louvar?”
Começaram as “exéquias” com essa música. (se pode ser chamada de música)
O Padre e sua turma de veneráveis ministros e acompanhantes entupiu a capela espremendo todos que estavam ali para se despedirem de mim.
Que pessoas realmente veneráveis. Tinha um senhor que durante 40 anos de casamento teve uma amante; uma das beatas presentes sabia tudo o que se passava na cidade com todos os habitantes. Eu disse: todos! Com o fluxo de dízimo que entrava na Igreja dava para construir cinco paróquias iguais àquela, mas ninguém sabe o que aconteceu porque o dinheiro diminuiu consideravelmente. Dizem que por culpa do padre e do tesoureiro. Fofocas de sacristia! Sempre comentaram sobre hábitos alimentares e amorosos de certos representantes da instituição, mas nada foi comprovado, sendo consideradas apenas balelas da sociedade.
Meu enterro? Ah, sim, quase ia me esquecendo!
A água benta que me jogaram estava fria. Ou eu estava frio? Já não sei mais.
Sei de uma coisa. É ridículo contemplar a cena da hora em que se fecha o caixão. Todos numa única comoção choram sem parar. É preciso que arranquem pessoas dali aos solavancos. Ainda bem que Cecília não reproduziu um jargão conhecido nesses momentos: “Leve-me junto com você, querido!” Isso já seria demais!
Minha mãe disse uma frase que me intrigou profundamente: “Vá com Deus, meu filho!”
Ir com Deus? Mas eu não estava indo para Deus? Ou não? Será que minha mãe sabia que eu não iria para os braços do Pai e teria que amargar uma longa temporada vagante? Dona Sara é sábia, mas acho que não o suficiente para saber que Deus teria que me acompanhar, pois eu não iria para o céu!
Pois é, caros amigos, e foi dentro do caixão que senti que a rua que me levaria para o cemitério estava precisando de reparos. E com urgência!
Usaram um carrinho com rodas que rangiam demais e quem empurrava talvez não tivesse a noção que havia alguém dentro da urna! Eu quis bater na tampa e gritar: “Cuidado! Não é nenhum porco que você leva!”
E como as pessoas conversam durante o enterro? Apreciam a paisagem, aproveitam para colocar a conversa em dia, enfim, fazem tudo, menos respeitar o momento.
Como foi o enterro? Ora essa, que pergunta! Eu estava dentro do caixão, como poderia saber?

22 junho 2007

Contagem Regressiva

A parte da tarde foi mais lenta.
Não fazia tanto frio e as pessoas pouco se interessaram pelo passeio até aqui.
Mamãe apareceu logo depois do almoço. De óculos escuros! Dona sara estava elegante; não vestia preto, mas usava sua melhor combinação de saia e blusa. Foi assim na minha formatura, no meu casamento e, agora, no meu velório.
Rafael, o pestinha, estava correndo pelo jardim e vez ou outra escutava Juliana chamá-lo docemente de “anjo”. (!)
Uma mulher se aproximou lentamente. Tinha os cabelos presos e também óculos escuros. Chorava por mim? Era ela mesma. Tal como me recordava dela há mais de vinte anos. Denise. Meu amor de adolescência. Foi colega de minhas irmãs e por muito tempo estudaram juntas. Ela continuava charmosa e com trejeitos de mulher madura ficava ainda mais bonita.
Perdoe-me, Cecília, querida, mas não poderia deixar de relatar sobre Denise. Essa lembrança agradável de meu passado está guardada aqui, dentro de mim, porém apenas com um valor simbólico dos meus tempos de rebeldia e diversão. Somente isso.
Do outro lado do caixão, já cumprimentando minha mãe, estava um amigo de infância, talvez o único que tive e que acompanhou-me por décadas. Gustavo. Grande amigo. Passamos por aventuras e apuros que vocês nem podem imaginar! Por causa do Gustavo eu tenho uma cicatriz na perna e por minha causa ele levou a primeira surra de vara de marmelo. Minha primeira namorada foi a irmã dele e emprestei meu pai quando o dele faleceu. Sentávamos juntos na sala de aula, fazíamos dever de casa juntos, aprendemos a beber e fumar. Prestamos vestibular para engenharia na mesma faculdade. Eu passei e, infelizmente, ele precisou tentar de novo. Depois disso nos separamos. Hoje o Guto tem uma confecção na cidade.
Ele cumprimentou Cecília e os meninos. Contou algumas de nossas peripécias e depois se afastou.
De repente ouvi Leandro dizer à Marcelo que o Padre estava a caminho para encomendar meu corpo. Pronto. Era chegada a hora deixar definitivamente o convívio entre os vivos para vagar pelos obscuros caminhos que os mortos fazem.
Depois que o Padre dissesse “Amém”, eu diria “Adeus”.

21 junho 2007

Hora do Almoço

O fato de estar morto começava a me incomodar. Limitações.
Gosto de dormir de bruços e mesmo quando estamos no inverno eu dispenso muitas roupas. Enfiaram-me um terno justo, desses que não servem mais e na primeira oportunidade se livram dele! Os mais novos seriam distribuídos na póstuma partilha.
Dizem que depois de velho ficamos rabugentos; depois da morte estou descobrindo a implicância adormecida em mim.
Primos. Tios esquecidos. Uns amigos de infância. Outros que vieram lá do trabalho para me ver. A família de Cecília. Carol esteve ali junto com Beatriz.
O cômico foi ouvir frases e comentários peculiares de quem observa um morto, no caso, eu.
“Mas ele está muito bonito!” É ridículo, mas tem gente que comenta isso à beira da urna...
“Acabou de sair um café quentinho lá na cozinha!” Claro que sai quente, é feito no fogo...
“A viúva está tão acabada. Já, já arruma outro!” Línguas malditas...
“A sogra não veio. Eles não se davam bem.” Minha sogra já morreu...
“Nossa, o irmão dele nem entrou aqui. Será que era contagioso?” Não. O que eu tinha não era contagioso.
“Dizem que a família gastou tudo com o coitado.” Quando descobrimos o que eu tinha não dava tempo de gastar com quase nada.
“Foi bebida?” Não. Eu bebi muito quando era jovem e usei drogas também, mas não foi isso que causou minha enfermidade.
E por aí foi correndo o dia.
Impressionante como a imaginação das pessoas vai além.

Ainda pela manhã

Estranha a sensação de estar morto e não poder mover um único músculo.
Se estivesse vivo teria câimbras. Poderia sentir membros formigando pesados. Circulação presa. Não posso olhar sequer meus dedos dos pés na posição que me encontro. Estava irritado à uma hora daquelas.
Que sufoco! Colocaram algodão no nariz, boca e sabe Deus onde mais! Ainda não sinto outro lugar incomodando, porém algodão no nariz é sufocante. É, eu sei que já não respiro, mesmo assim é horrível.
É possível rir num velório? Descobri que sim. Só não sabia que ririam tanto justamente no meu! Logo Ernesto? Era sim a risada de meu irmão que ouvia. Do que ria tanto? Como sou curioso!... E nem erguer a cabeça para espiar eu podia! E pensar que disse a vocês que ele era sensato... Traidor!
Fabrício acabara de chegar com Juliana e o pestinha. Era dele mesmo que Ernesto ria. Acreditem vocês que o menino se recusou entrar no velório só porque eu disse que apareceria para puxar seu pé quando morresse. Binho agarrou-se à Cecília e juntos voltaram-se para o caixão. “Mano velho, tu vai fazer falta, cara!”
Eu perguntei se poderia dormir de novo e não ter que presenciar essas cenas, mas provavelmente fazia parte da minha sina ver tudo isso.
“Tio Maurício tá esquisito, mãe!”
Realmente, caros companheiros de horas mortas, claro que é possível rir muito num velório. Descuidaram do pestinha do meu sobrinho e ele arrancou os chumaços de algodão do meu nariz. O garoto tem 7 anos! Ninguém disse a ele que eu estava morto e não era bonito mexer no defunto?!
A explicação do Seu Pacheco, amigo de mamãe, foi fantástica: “O algodão está ali para ele não sentir o cheiro das flores.”
Isso. Curto e grosso.
Só mais uma pergunta: as pessoas pensam que é servido almoço em velórios? Já repararam que nessa hora o local fica tomado?

20 junho 2007

Pela manhã

A maratona mais cansativa é velar um defunto e posso atestar a veracidade dessa afirmação.
Madrugada terminando para os primeiros raios do sol de inverno aparecerem e já levaram-me para o velório.
A única visão que eu tinha de dentro do caixão era a parte de cima. Não havia como olhar para os lados. Quantas flores me rodeavam, não pude ver totalmente o que estava acontecendo. Vez ou outra vultos passavam rápido pela beirada, conversas baixas, suspiros, choro quase imperceptível e aquele "fungar" de narizes.
Cecília estava ali, sentada ao meu lado. Só podia ouvi-la e ver sua mão tocar a minha. Contava sobre a noite anterior. Como eu estava tranqüilo e calmo e como ela sentia minha falta. Mas eu ainda estava ali.
Beatriz estava do outro lado. Pude vê-la quando ficou de pé a me olhar profundamente. Não dizia uma só palavra, mas seu rosto estava duro e parecia que estava sozinha a contemplar minha morte.
Pela conversa entre Lucas e Ana soube que minha mãe esteve no velório e Letícia a levou para casa. As gêmeas foram com ela.
De repente meus cunhados estavam ao meu lado. Estranha a forma como olhavam para mim. Não entendi muito bem no momento até que Rogério fez um comentário inusitado: “E agora? Quem vai cuidar das coisas por lá?” “Talvez o Lucas, mas ele é inexperiente!” – Grandes homens, Rogério e Leandro. Dois grandes urubus rondando uma carniça que ainda nem tinha esfriado direito.
Fui uma pessoa que batalhou muito para conseguir dar conforto para a família, mas não poderiam dizer que eu escondia ouro num baú. Pela lógica meu filho Lucas saberia o que fazer com o que nossa família possuía, até mesmo porque Cecília ainda estava entre eles.
De qualquer forma, os dois cunhados fazem jus ao parentesco que me oferecem. Pena de minhas irmãs. Mas olho apenas pela minha ótica. Devo respeitar a deles.
Ainda não havia localizado Marcelo. Porém, Beatriz ainda estava ali. Duas senhoras chegaram até ela e a princípio não as reconheci. Mas depois que fizeram a volta e foram até Cecília é que lembrei-me das duas. Tia Sofia e Tia Marlene, irmãs de meu pai. Simpáticas senhoras tradicionais conservadoras da cidade. Ambas viúvas e dedicadas à Igreja Católica, já logo informaram que o padre faria a encomendação. (?)
Não consegui gargalhar, mas a vontade foi essa. Encomendar o que? “Deus, estou mandando seu filho Maurício. Cuidado, ele é manso, mas não o deixe nervoso!”
Caros amigos viventes, narrar meu velório, por mais que pareça cansativo, foi uma experiência interessante. Portanto, não posso relatar tudo numa postagem única. As cenas foram se formando e a ambição de meus cunhados era apenas o começo de minhas surpresas.

18 junho 2007

O Vácuo

Pois é. Como eu já havia dito. Não me lembro muito bem do que aconteceu na hora da morte porque as coisas ficaram um pouco confusas e minha memória falhou.
Depois que senti que não respirava mais desesperei! É, caros amigos vivos, entrei em desespero quando não senti mais os ares pelos pulmões. Fiz-me de duro, compreensivo e tranqüilo, porém na hora do "vamo vê" eu "amarelei". Não. Não foi dessa cor que eu fiquei. Por incrível que pareça eu fiquei normal! Só depois de algumas horas que notei o roxo, o preto e aí, sim, o amarelão morto. Palidez mórbida total!
Não posso relatar como foi Cecília amanhecer com o novo defunto do seu lado e nem posso descrever a tristeza de toda a família, apesar de todos estarem cansados de saber que eu morreria de uma hora para outra.
O que consigo descrever foi que permaneci durante algumas horas em transe. Não ouvia, não via e nem sentia nada ao meu redor.
Confesso que fiquei frustrado. Lógico! O mundo inteiro se pergunta se há vida depois da morte. Há mesmo! Mas não se lembrar das primeiras horas da morte é muita covardia...
Talvez seja como nascer. Alguém por acaso se lembra da hora do nascimento? O famoso "tapinha" do médico? Se alguém disser que sim, é mais lunático do que eu, então deveria estar escrevendo a própria história e não estar lendo a minha!
Deixemos de dar voltas e vamos ao que é interessante.
Esse negócio de não estar lúcido na hora da morte... Isso é vantajoso! Não passei pelo constrangimento de lembrar quem me vestiu a mortalha, a funerária provavelmente me preparou com aqueles procedimentos um tanto quanto desagradáveis...
É. Foi bom mesmo a memória falhar.
Mas esse transe deveria ter durado mais.
Passar o dia todo no velório me deixou exausto.

15 junho 2007

A Partida

Falar da minha partida deste para outro mundo ainda é difícil, pois, não consigo ordenar as lembranças. Foi tudo muito conturbado. Só posso garantir: sabemos perfeitamente quando a hora chega; tudo vai ficando claro na nossa mente e já não nos sentimos pesados pelo fardo da carne.
E ninguém pode me contestar por isso. Nem padre, nem pastor, nem quem freqüenta sessão espírita do seu lado ou do meu. Estou morto e posso narrar o que eu passei e estou passando. Há quem diga que a vida não é fácil... Estes não sabem o que é a morte!
Deixemos as explicações de lado e voltemos aos meus últimos momentos. Momentos que carrego bem vivos comigo mesmo eu não estando vivo.
Após tomar todos os remédios que me eram impostos antes de dormir, fiz minhas orações como sempre, mas naquela noite havia algo diferente. Uma paz imensa inundava minha alma. Respirava melhor e consegui deitar-me e cobrir-me sem a ajuda de Cecília. Ela ficou surpresa e feliz por isso. Deitou-se ao meu lado e olhou bem no fundo dos meus olhos. Silêncio.
Quis não existir naquele momento. A lágrima que desceu pelo rosto de minha esposa era cristalina e pura como o sentimento dela por mim. Eu a fazia sofrer naquele momento e não gosto de pensar nisso até hoje. O coração acelerado estando ali diante do meu anjo terreno por 25 anos. Pouco tempo. Queria mais. Toquei seus cabelos e repeti a frase que sempre nos dissemos depois de nos casarmos: “Um dia dormiste com os anjos e sonhaste comigo; hoje, sonhas com os anjos e dormes comigo”.
O sono veio logo em seguida.
Adormeci segurando sua mão.
E morri ainda sentindo o calor de seus dedos.

14 junho 2007

O Jantar

Particularmente a noite daquela quarta-feira estava muito fria. Sentia o vento pela fresta da janela cortar-me a pele. Talvez pelo fato de ter emagrecido uns 20 quilos eu esteja reclamando tanto. Olhem só! Cecília andava reclamando do meu excesso de peso, agora não há com o quê ela implicar.
Já passava das dezoito horas e senti um aroma delicioso vindo da cozinha. Graças, Dona Sara e sua sopa! Inevitavelmente quando estamos doentes somos obrigados a comer e beber coisas estranhas e insossas. Mas, para meu agrado, a sopa simples de macarrão com batatas de minha mãe é imbatível. Deliciosa.
Estava acompanhado de Lucas, meu filho mais velho. Formou-se em Administração ano passado e estava procurando por emprego há meses. Por uma brincadeira estúpida do destino, se é que ele existe, conseguiu uma vaga no escritório de um amigo de papai. Durante aquele longo inverno estaria trabalhando perto de mim. Conversávamos exatamente sobre o que ele faria quando tudo terminasse. Ele voltaria para casa com Cecília ou ficaria com a avó? Lucas sabiamente respondeu-me que o tempo mostraria o que fazer. Calei-me.
Cecília apareceu e era como se o sol entrasse naquele quarto. Linda. “Hora do remédio” disse-me docemente. Nos conhecemos numa situação estranhíssima: um engarrafamento. Eu voltava do trabalho e ela ia para a faculdade. Nessa tarde eu não vi futebol pela tv e ela perdeu um seminário sobre ciência política; terminamos a noite tomando vinho tinto e comendo pizza.
Marcelo e Beatriz não estavam em casa quando mamãe terminou o jantar. Filhos... Resolvi ir até a cozinha para comer à mesa. Mesmo todos reprovando minha ida até lá por estar frio, e blá blá blá... Por que o moribundo não pode tomar alguma decisão de vez em quando só para variar?
E não é que na hora em que começávamos a jantar os meninos apareceram? Marcelo está cursando Direito e Beatriz ainda não resolveu o que fazer da vida. Sempre mimada essa minha filha. Culpa minha.
Foi divertido. Pude olhar bem para cada um de meus amados. Os olhos verdes de minha mãe estavam mais vivos e pude perceber que meus filhos estavam ali comigo! Isso já fazia uma grande diferença. O perfume de Cecília.
Até brinde com água eu fiz!
“Que tudo seja eterno enquanto tivermos amor dentro de nós”

13 junho 2007

A Família

Eu me perguntava como voltar para casa de meus pais àquela altura da minha vida e naquela circunstância. Foi a primeira providência que minha esposa Cecília e Dona Sara, minha mãe, tomaram sem ao menos perguntar se eu gostaria da decisão. Mas o que fazer quando as mulheres tomam conta das nossas vidas? Apenas deixamos que tudo corra tranquilamente. E foi o que eu fiz.
Meu irmão mais velho passou as férias comigo. Quem diria! Quando adolescentes não nos suportávamos e agora Ernesto ajuda-me nos banhos. Ele sempre fora tão sensato e correto. Um viúvo convicto. Seus filhos, um casal, já estavam com suas vidas feitas morando no sul do país.
Ana esteve conosco no fim de semana anterior com Rogério e minhas sobrinhas gêmeas. Lindas aquelas garotinhas exatamente iguais a não ser por uma pequena mancha de nascença no ombro direito de Mariana. Melissa não tem essa marca. Ou será ela e não Mariana? Isso não faz diferença agora.
Letícia, minha outra irmã, deixou o esposo Leandro na capital e veio para me ver junto com Carol, minha afilhada. Quão doce é Carolina! Se Beatriz tivesse sido um pouco como a prima! Mas minha filha foi minha filha do jeito dela, não a recrimino de maneira nenhuma. Não posso se eu mesmo deixei de ser o pai que ela gostaria que eu fosse. Chega! Sem sentimentalismo num momento desses. Estou a contar meus devaneios.
Não posso me esquecer do irmão caçula: Fabrício. O menino prodígio da casa. Segundo Dona Sara, Binho veio para ser diferente de tudo o que ela passou na criação de sua prole. Agora ele é um rapaz comportado e casado com a linda Juliana. E para perpetuar sua antiga rebeldia o pequeno Rafael. Este menino enlouqueceu meus últimos dias como se tivesse vindo exatamente para isso: desorientar-me!
E nessas lembranças e aconchego familiar passei um dia inteiro com todos eles juntos na casa de minha mãe. Papai teria ficado feliz com toda aquela agitação. Como nos velhos tempos, antes dele partir.
Depois daquele domingo eu poderia contar mais 3 dias para estar me despedindo desta e rumando para uma outra que não sabia se seria melhor ou pior.

O Corpo

Quando comecei sentir alguns sintomas da doença nem pude reclamar, pois já era de se esperar que aquilo tudo viria como uma onda de calor intensa e avassaladora. Meus braços e pernas começaram a ficar adormecidos e era como se um formigueiro inteiro passeasse por eles. Cócegas.
A cabeça ainda não começara a dar sinais de “defeito”, mas, o paladar deixava de aproveitar o que de bom a cozinha mineira tem e a forma com que minha mãe fazia tão carinhosa e gratuitamente bem.
No princípio eu costumava sair até o quintal e sentar-me num banco de madeira feito por meu pai ao lado da jabuticabeira. Olhava tudo e não sentia nada. Apenas apreciava o sabiá cantando, galinhas por todos os lados. O vira-latas que meus filhos acharam na estrada estava ali com seu olhar agradecido pelo salvamento. Ora essa, eu apenas o coloquei na carroceria da Saveiro e nada mais. E o pequeno Lucky estava comigo a olhar-me serenamente.
Às vezes acordava no meio da noite tendo uma dor insuportável no peito, parecia que a hora derradeira era aquela, mas depois vinha um alívio repentino para desencadear vômitos contínuos.
Logo vieram as constantes crises de delírio. Confesso que nem a cocaína mais pura tem o mesmo efeito. Antes uma overdose tivesse levado minha vida antes. Horas para remédios ultrapassavam as 24 que o dia tem. O criado-mudo parecia a vitrine da loja de doces que havia na cidade anos atrás: colorida, cheia de balas de todos os tamanhos e sabores. Remédios. O que os faz diferente do veneno? Um controlava a pressão, o azul regulava as funções intestinais, aquele maior servia para eu dormir mais relaxado e assim foram os dias.
E a cada um desses dias eu via meu corpo definhar. Mas eu levava a quase morte num ritmo lento. Quando a minha família começou a chegar uns após os outros: irmãs, irmãos, cunhados e sobrinhos, aí sim, eu comecei a desconfiar que a areia da ampulheta estava se esgotando.

12 junho 2007

O Início

Eu já não tinha muitas esperanças e nem expectativas para viver um longo tempo desde quando descobri que a morte era certamente inevitável. As pessoas ao meu redor padeceram mais do que eu e nem por isso tive aquela súbita força para resistir. O médico chegou com seu altivo laudo cheio de expressões nem um pouco agradáveis, mas, "vamos lá", eu pensei, "o que poderia ser mais grotesco?" Foram exatos 60 dias para esperar a mensageira das trevas e, humanamente falando, 60 dias para gritar por misericórdia para quem fosse necessário. Das duas opções eu preferi a primeira. Claro! Talvez a morte não seria tão ruim quanto as pessoas imaginam.
A minha única objeção quanto a essa situação seria o porquê de ser agora, justamente no inverno? Tudo é mais difícil no inverno: tomar banho, trabalhar, divertir e até morrer. No verão seria mais fácil, eu apenas teria que esperar nu debaixo dos lençóis com um ventilador velho voltado para a cama. Só um pormenor me deixou mais tranqüilo: tantas pessoas no quarto a espera de meu último suspiro iriam encalorar o ambiente, já no inverno isso seria uma vantagem. E foi mesmo!
No princípio tudo foi de um humor macabro, me divertia com as pessoas vindo me visitar e me dizerem palavras de força, coragem, esperança. Fui alvo de atenções e paparicos que nem quando tinha 5 anos de idade eu pude desfrutar. Meus filhos conseguiram enxergar o pai, minha esposa foi piamente fervorosa até o fim, meus irmãos e suas famílias vez ou outra davam o ar da sua presença e minha santa mãe esteve ali sempre orante: "Deus vai olhar por você, meu filho!"
E eu gostaria que olhasse mesmo! Dizem que o céu é o paraíso. Eu queria banho quente, cama macia e um café da manhã completo quando me levassem para lá. Depois gostaria que meu anjo da guarda explicasse porque foi tão ausente na sua missão. Isso mesmo! Ele vacilou em vários momentos, eu aguardaria seu relatório ansiosamente.
Pois bem, eis a minha visão do tempo que restava ao meu frágil corpo, mas eu não tinha imaginado que esse corpo seria tão cruel com a minha essência.